José, o filho mais amado de Jacó, foi vendido como escravo pelos
próprios irmãos. Disseram estes ao pobre pai que uma fera havia comido
aquele a quem a Providência havia mostrado sua predileção através de
sonhos. A Bíblia descreve a dor de Jacó, o pai que amava o caçula
prometido por Deus, dotado de tantos dons naturais e sobrenaturais. Após
anos de separação, por causa de uma seca que assolou a Palestina, os
irmãos do escravo José encontraram-se agora com o vice-rei do Egito.
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A cena da autorrevelação de José aos seus irmãos é comovente. O escravo
vendido pelos seus parentes havia se tornado o segundo homem do Egito e
lhe cabia a missão de salvar a seus irmãos da miséria. O próprio José
explicou a grandeza do acontecimento: "não fostes vós que me fizestes
vir para aqui. Foi Deus. [...] Premeditastes contra mim o mal: o
desígnio de Deus aproveitou-o para o bem [...] e um povo numeroso foi
salvo" (Gn, 45, 8; 50, 20).
Esta é uma das inumeráveis ações da Divina Providência. Quantas e
quantas vezes vê-se na História da Salvação, que Deus em sua onipotente
Providência, pode tirar um bem consequente do mal, mesmo moral, causado
pelas criaturas. Este atributo de Deus é ao mesmo tempo pervadido de
grandeza e mistério. Por esta razão, São Paulo exclama: "Ó abismo de
riqueza, de sabedoria e de ciência em Deus! Quão impenetráveis são os
seus juízos e inexploráveis os seus caminhos!" (Rm 11,33). Ajoelhado
diante desta magnitude, é natural que nos perguntemos: o que a doutrina
Cristã ensina acerca da Providência Divina?
O que é a Divina Providência?
Ensina o Catecismo que "a divina Providência consiste nas disposições
pelas quais Deus conduz, com sabedoria e amor, todas as criaturas, para
o seu último fim"[1]. Toda a criação foi formada "em estado de caminho"
para uma perfeição última destinada por Deus a todos os homens: a
salvação eterna[2].
Chamamos Divina Providência às disposições pelas quais Deus conduz a
sua criação em ordem a essa perfeição. O Concílio Vaticano I afirma que
"Deus guarda e governa, pela sua Providência, tudo quanto criou,
‘atingindo com força de um extremo ao outro e dispondo tudo suavemente'
(Sb 8, 1). Porque ‘tudo está nu e patente a seus olhos' (Hb 4, 13),
mesmo aquilo que depende da futura ação livre das criaturas".[3]
O que a Bíblia fala sobre a Providência de Deus?
Na Bíblia encontramos diversos testemunhos desta ação divina. Deus
não deixa faltar o maná ao povo no deserto e cuida da viagem de Tobias
(cf. Tb 2. 12-18). A solicitude da Divina Providência é concreta e
imediata, abrange tudo, desde os mais insignificantes pormenores até os
grandes acontecimentos da história do mundo. Os livros santos afirmam,
com veemência, a soberania absoluta de Deus no decurso dos
acontecimentos: "Tudo quanto Lhe aprouve, o nosso Deus o fez, no céu e
na terra" (Sl 115, 3); "há muitos projetos no coração do homem, mas é a
vontade do Senhor que prevalece" (Pr 19, 21).
Muitas vezes, vemos o Espírito Santo, o autor da Sagrada Escritura,
atribuir a Deus certas ações, sem mencionar causas segundas: "Deus
protege a viúva e o órfão". Como estes, diversos são os exemplos na
Bíblia. O Catecismo recorda que isso não é "uma maneira de dizer"
primitiva, mas sim um modo profundo de afirmar o primado de Deus e seu
senhorio absoluto sobre a história e sobre o mundo (Cf. Is 10, 5-15;45,
5-7;Dt 32, 39;Eclo 11,14). Desta forma, Deus nos ensina a ter confiança
n'Ele. A oração dos Salmos é, aliás, a grande escola desta confiança
(Cf. Sl 22; 32; 35; 103; 138).
No Evangelho, Jesus nos convida a um abandono filial à Providência do
Pai Celeste, que cuida das pequenas necessidades dos seus filhos: "Não
vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? Que havemos de beber?
[...] Bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso. Procurai
primeiro o Reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será dado por
acréscimo" (Mt 6, 31-33; Cf. Mt 10, 29-31; Mt 6,11).
O apóstolo São Pedro exorta aos primeiros cristãos: "Lançai sobre
Deus toda a vossa inquietação porque Ele vela por vós" (1Pd5, 7; Cf. Sl
55, 23). Esta era a firme crença nos primórdios do Cristianismo como
afirmavam diversos Padres da Igreja: Clemente de Alexandria[4], Orígenes
e Santo Agostinho[5].
Existe o acaso?
Há diversas correntes de pensamento que negam a existência da Divina
Providência. A primeira delas argumenta que a existência do acaso
elimina a possibilidade de que Deus governe todos os acontecimentos.
Segundo alguns autores, o mundo é regido pelas suas regras. O cair de
uma folha, o cantar dos pássaros ou mesmo o existir de um animal na
profundeza dos mares em nada é influenciado por Deus que não governa
todos os aspectos da vida.
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De fato, é preciso reconhecer que existem três tipos de acontecimentos:
um é casual, totalmente neutro em ordem à nossa salvação. Não se pode
encontrar razões a não ser na casualidade para fatos como alguém sentar
ao meu lado no ônibus usando uma camisa de determinada cor. São
acontecimentos realmente neutros, normais e aleatórios em nossa vida[6].
Entretanto, há também certos eventos em nosso cotidiano que derivam
da liberdade ou da contingência humana. O filho estudar em determinado
colégio, não é casual, deriva da vontade dos pais, que preveem e
predeterminam algo em relação aos seus filhos. Orientam assim ocasiões
para o bem de sua prole.
Todavia, de forma muito mais comum do que pensamos, inúmeros
acontecimentos da vida correspondem a verdadeiros desígnios da
Providência. Segundo o Divino Mestre, nenhum fio de cabelo cai de nossa
cabeça sem Seu consentimento (cf. Lc 12,7).
Acrescenta-se ainda que Deus é a causalidade universal de todos os
acontecimentos, mesmo dos casuais, Ele é o Senhor mesmo do acaso, pois é
a origem primeira de toda a criação. Por esta razão, Deus conhece em
sua Providência todas as coisas. De fato, providência deriva de pro, um
prefixo grego, que significa antes, e de vidência, deriva do verbo
latino videre, ver. Deus vê tudo com antecedência.
A Providência de Deus não predetermina os acontecimentos, mas permite
e orienta as situações em ordem à nossa Salvação. Sendo Senhor das
regras e leis da natureza, pode prever com insuperável e misteriosa
ciência - a qual nossa razão humana não pode alcançar - detalhes mínimos
da vida cotidiana para o bem das almas.
Conta-se que certa vez, uma senhora tentada de suicidar-se carregou
um revólver a fim de cumprir seu triste objetivo. No momento em que ia
desferir contra si o disparo, ouviu o toque da campainha da casa. Para
atender aquele que seria seu último contato neste mundo, depositou a
arma sobre a mesa e apenas viu um envelope de uma campanha católica. Ao
abri-lo uma imagem da Virgem Maria a fez cair em si. Admirada, abandonou
a ideia de suicídio e voltou à frequência da Igreja. O carteiro nem
imaginava que a Providência Divina contava e seus passos a fim de salvar
uma vida...
Frei Garrigou-Lagrange recorda que "por insondável que seja esta
sabedoria divina não é obscura para nós, senão porque é demasiado
luminosa em si mesma"[7]. A providência é uma consequência dos atributos
da onisciência e da onipotência de Deus. A providência é ditada pela
bondade generosa e misericordiosa de Deus. É pessoal; cuida com amor de
cada homem; não é uma ação automática e mecânica. Deus a tudo sustenta.
Se, hipoteticamente, esquecesse um momento de alguém, este voltaria ao
nada, deixaria de existir.
A presciência de Deus quanto aos acontecimentos contingentes à
vontade humana é um dogma definido pelo Concílio Vaticano I. A
providência elimina o casual. Esta ideia é tão racional que mesmo certos
povos antigos chegaram à conclusão da Providência Divina. Existe
referência a este atributo divino em muitas religiões antigas e na
filosofia grega.
A Providência Divina não limita a liberdade do homem?
Outra objeção contra a existência da Providência Divina está na
liberdade do homem, pois se Deus soubesse nossas atitudes desde toda
eternidade, significaria que elas são predeterminadas. Isto redundaria
que conforme defenderam vários hereges, não possamos ter plena
liberdade. Existem assim os predestinados à salvação ou à condenação
eterna. A Igreja rejeita estes erros contrários à esperança e ao temor
cristão, porque levam o homem ao desespero ou à presunção de sermos
salvos.
É preciso observar ainda que há uma distinção entre providência e
predeterminação. Se Deus determinasse todos os atos humanos, sua
salvação ou perdição eterna, o homem não possuiria liberdade. Deus prevê
as ações dos homens antes mesmo de criá-los. Isto não desdoura a
perfeição da criação, mas glorifica seu Autor em razão da capacidade de
criar seres livres ainda que sejam capazes de Lhe ofender[8].
Ora, Deus é o Senhor soberano dos seus planos. Mas, para a realização
destes, serve-Se também do concurso das criaturas. Isto não é um sinal
de fraqueza, mas da grandeza e bondade de Deus onipotente. É que Ele não
só permite às suas criaturas que existam, mas confere-lhes a dignidade
de agirem por si mesmas, de serem causa e princípio umas das outras e de
cooperarem, assim, na realização do seu desígnio.
Ensina o Catecismo que, aos homens, Deus concede a participação na
sua Providência, confiando-lhes desde o início do mundo a
responsabilidade de "submeter" a terra e dominá-la (cf. Gn1, 26-28).
Assim, concede-lhes que sejam causas inteligentes e livres para
completar a obra da criação e aperfeiçoar a sua harmonia, para o seu bem
e o dos seus semelhantes.
Entretanto, ainda que sejamos muitas vezes cooperadores inconscientes
da vontade divina, podemos entrar deliberadamente no plano divino,
através das obras de apostolado e das orações, como também pelos nossos
sofrimentos (Cf. Cl 1,24). Tornamo-nos, então, plenamente "colaboradores
de Deus" (1Cor 3, 9; Cf. 1Ts 3,2.) e do seu Reino (Cf. Cl 4,11)[9].
Assim, Deus é a causa primeira, que opera nas e pelas causas segundas:
"É Deus que produz em nós o querer e o operar, segundo o seu
beneplácito" (Fl2, 13; Cf. 1Cor 12, 6).
A Providência não pode evitar o mal e o sofrimento?
Narra Battista Mondin, que durante a II Guerra Mundial um soldado
nórdico tomou à força o filho recém-nascido de uma prisioneira.
Atirando-o ao chão, esmagou com o calcanhar a cabeça da criança diante
da pobre mãe[10]. O fato é chocante. Por esta razão, certos autores se
perguntam, por que não interviu Deus diante de tamanha crueldade? Enfim,
por que Deus permite o mal sobre a Terra?
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O Catecismo ensina que a esta questão, "tão premente como inevitável,
tão dolorosa como misteriosa, não é possível dar uma resposta rápida e
satisfatória"[11]. É o conjunto da fé cristã que constitui a resposta a
esta questão. É a bondade da criação, o drama do pecado, o amor paciente
de Deus que vem ao encontro do homem pelas suas alianças, pela
Encarnação redentora de seu Filho, pelo dom do Espírito, pela agregação à
Igreja, pela força dos sacramentos, pelo chamamento à vida
bem-aventurada, à qual as criaturas livres são de antemão convidadas a
consentir, mas à qual podem, também de antemão, negar-se, por um
mistério terrível. Não há nenhum pormenor da mensagem cristã que não
seja, em parte, resposta ao problema do mal[12].
Todavia, ainda poderíamos nos perguntar: Por que Deus não criou um
mundo tão perfeito, que nenhum mal pudesse existir nele? De fato,
Segundo São Tomás, no seu poder infinito, Deus podia ter criado um mundo
melhor[13]. No entanto, na sua sabedoria e bondade infinitas, Deus quis
livremente criar um mundo "em estado de caminho" para a perfeição
última. Este devir implica - no desígnio de Deus, juntamente com o
aparecimento de certos seres e o desaparecimento de outros - o mais
perfeito, com o menos perfeito; as construções da natureza, com as suas
destruições. Com o bem físico também existe, pois, o mal físico durará
enquanto a criação não tiver atingido a perfeição[14].
Os anjos e os homens, criaturas inteligentes e livres, devem caminhar
para o seu último destino por livre escolha e amor preferencial. Assim,
podem desviar-se do seu fim último ordenado e racional e de fato pecar,
como narra a História e nossa experiência própria. Foi assim que entrou
no mundo o mal moral, ou seja o pecado,incomensuravelmente mais grave
que o mal físico. Deus não é, de modo algum, nem direta nem
indiretamente, causa do mal moral[15]. No entanto, permite-o por
respeito pela liberdade da sua criatura e misteriosamente sabe tirar
dele o bem. Como no caso de José do Egito, Santo Agostinho afirma que
"Deus todo-poderoso [...] sendo soberanamente bom, nunca permitiria que
qualquer mal existisse nas suas obras se não fosse suficientemente
poderoso e bom para do próprio mal, fazer surgir o bem"[16].
Os santos sempre afirmaram esta verdade. Santa Catarina de Sena
declarava aos "que se escandalizam e se revoltam contra o que lhes
acontece": "Tudo procede do amor, tudo está ordenado para a salvação do
homem, e não com nenhum outro fim"[17]. O inglês, São Tomás Moro, pouco
antes do seu martírio, consola sua filha com estas palavras: "Nada pode
acontecer-me que Deus não queira. E tudo o que Ele quer, por muito mau
que nos pareça, é, na verdade, muito bom"[18]. Juliana de Norwich:
"Compreendi, pois, pela graça de Deus, que era necessário ater-me
firmemente à fé [...] e crer, com não menos firmeza, que todas as coisas
serão para o bem [...]. Tu mesmo verás que de todas as maneiras serão
boas"[19]. São Paulo Apóstolo não hesita em afirmar que "tudo concorre
para o bem daqueles que amam a Deus" (Rm 8, 28).
De fato, do maior crime praticado na História, como a condenação e
morte do Filho de Deus, causado pelos pecados de todos os homens, Deus,
pela superabundância da sua graça (cf. Rm 5, 20), tirou o maior dos
bens: a glorificação de Cristo e a nossa redenção.
A Fé na Divina Providência de Deus nos convida à confiança.
Ainda quando nos sentimos nesta vida desorientados, sem o rumo certo ou
numa verdadeira "avenida de becos sem saída", devemos nos lembrar que
Deus guia nossos passos. Os caminhos divinos podem nos ser de fato
desconhecidos e dolorosos, mas devemos tanto nos imprevistos miúdos do
dia-a-dia como e sobretudonos grandes dramas da existência, ver os dedos
discretos, amorosos e eficazes de Deus, guiando a trama de nossa vida.
Assim, seremos verdadeiramente tranquilos e pacientes, abandonando-nos
totalmente aos cuidados da Divina Providência.
Por Marcos Eduardo Melo dos Santos